domingo, 31 de maio de 2009

armênia

não conheço a armênia. mas hoje, nos olhos do dono de um restaurante, eu a conheci. 

sábado, 30 de maio de 2009

sono

quando eles dormem, embora já grandes, parecem pequenos, na desproteção livre do seu sono. olho, beijo e acaricio o cabelo de cada um. lembro de quando eu os carregava no colo. tudo isso me dá uma pequena paz, que é tudo de que alguém precisa.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

circo

sonhei que meu nome era maria kazuma e que eu precisava escrever sobre o chico buarque e o jorge de lima. contei para um amigo, que me disse que o disco "o grande circo místico" tinha sido inteirinho baseado num poema do mesmo nome, escrito por jorge de lima. o poema é sobre várias gerações de um circo húngaro. a canção "sobre todas as coisas", que fala de alguém abandonado pelo amor de deus, é uma contra-argumentação a um trecho do poema em que uma equilibrista do circo, que tem a paixão de cristo tatuada no ventre, faz com que os homens que se aproximam dela não consigam amá-la. chico buarque pensa que ninguém deve deixar de amar por amor a deus. pensei também que a maria kazuma do meu sonho era alguma representação do meu desejo de ser a maria kodama, assistente e mulher de borges. imaginei que maria kodama fez uma viagem à hungria, onde ela conheceu esse circo, voltou para a argentina, contou para borges, que deve ter contado a jorge de lima, que escreveu o poema, que foi musicado por chico buarque e, mais tarde, sonhado por mim. não acredito em mensagens, mas na linguagem. os sonhos são, como os poemas, palavras deslocadas, que viajam pelo mundo e pelos olhos, pelas memórias e lugares, reunindo possibilidades. assim eles gostam de ser sonhados.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

buraco

aqui perto estão recapeando o rio pirajussara. já estão fazendo isso há mais de um ano. passo por lá e vejo que se organiza uma sociedade paralela, com reciclagem de lixo, churrascos nos finais de semana, medidas rígidas de segurança, gabinetes de diretores e engenheiros, sinalizações detalhadas para cada atividade. uma placa me chama a atenção: perigo, buraco aberto. naquele momento a placa é o que melhor define o que sinto. entro lá para pedir uma placa daquelas. pode ser uma avariada, moço, qualquer uma. não vai ser fácil, as placas aqui são controladas, contabilizadas e, depois de avariadas, são inutilizadas. você vai precisar fazer uma requisição especial. requisição especial para o buraco aberto? é. ninguém estranha o meu pedido, ninguém pergunta. buraco aberto, lá, é buraco aberto. consigo a placa. coloco na parede da sala. não, meu buraco não é tão grande assim e não há razão para temê-lo.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

joana maria

joana maria, você me olhou e disse que não se lembrava de mim. eu disse que já a conhecia e você respondeu: sou velha e vesga. não lembro das coisas e não enxergo direito. fiquei vesga de tanta tristura. meu marido foi minha grande paixão. não era paixão pequena, não. era grande, dessas de uma vez só. ele morreu e eu chorei tanto durante a noite que acordei vesga. então eu contei a você que minha mãe é iugoslava e você me disse que me ensinaria a fazer um bolo da europa central. não de cereja, que aqui no brasil não se acha, mas de uva preta, a santa isabel, bem preta e bem baratinha. perguntei: mas tem que tirar o caroço? você respondeu: não, a gente come devagarzinho, saboreia mais e depois cospe. depois, você cantou comigo baby e tropicália. joana maria, você pode me ensinar todas as coisas?

terça-feira, 26 de maio de 2009

ainda

minha gata, nina, tem insuficiência renal. por isso, todos os dias, preciso dar água direto na boca dela, com uma seringa. cinco vezes por dia eu a seguro no colo, como a um bebê e olho nos olhos dela. ela também nos meus. o olhar assustado e crédulo. ela crê em mim, apesar do medo. mas nina, eu creio em você mais ainda.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

luzes

estava na rua procurando urgentemente uma papelaria. quando abriu o sinal e eu a atravessar a rua correndo, um velhinho de cabelos desgrenhados, camisa regata branca e larga, calça puída e olhar dilatado, se aproximou de mim e começou: "você viu os vagalumes? tinha um grupo enorme de vagalumes por aqui! é estranho, porque os vagalumes não costumam frequentar essa parte da cidade e muito menos nessa época do ano. são paulo tem milhões de vagalumes, eles iluminam minhas noites e você sabe, não é, que sua emissão de luz vem de órgãos fosforescentes que eles possuem no abdômen, mas tenho ficado muito preocupado, porque sua luminescência tem sido ameaçada pela forte iluminação das cidades que, inclusive, interfere em sua reprodução, o que ameaça até sua própria existência. você já imaginou o mundo sem vagalumes? é por isso que eu fiquei me perguntando sobre a presença desse grupo imenso bem aqui, nessa parte da cidade. você viu?" vi uma papelaria logo adiante e fui andando naquela direção. ele veio atrás de mim e continuou falando. não dei atenção a ele. fiz tudo para que ele percebesse que eu precisava entrar na papelaria. ele acabou se dando conta, seguiu adiante e, logo mais à frente, parou outra pessoa e desatou a conversar. meu deus, onde está esse homem? onde estão os vagalumes, que eu nunca os vi? por que sua luz está ameaçada de extinção pela grande luz da cidade, que ilumina os pedestres que vão atrás de papelarias?

sábado, 23 de maio de 2009

bíceps

poucas coisas existem melhores do que a aula de ginástica da claudia mello e da adriana nunes. mexer os braços para cima e para baixo para fortalecer os biceps, enquanto ouvíamos gilberto gil cantar todos os nomes de deus fez com que me sentisse dentro de uma oração coletiva única e necessária.

N'kukluk'mba .. Oshalah
Odin .. Manitoo .. Xuedeh 
Aggayun .. Göt .. Baoh 
Allah 

Tupan .. N'Olorun .. Tamnarah 
Golorud .. Ualereh 
Zambyn .. Zeus .. Ruwatah 
Iesu .. Jah .. Shalam-Tzieh 

Amaterasu .. Bathalah 
Mandarah .. Unguleveh 
Khrisnha .. Efozu
Amma 

Yambah .. Oshun .. Asdulai 
Kalah .. Okut .. Nyaambeh 
Aquaan .. Akuah 
Jesus .. Rah .. Yelen-Dayeh 

Tentei .. Dio 
Asher .. Dieu .. Dios .. Ymanah 
Kami .. So-Ko 
Lubnah .. Theos .. Yallah 

Maomeh .. Juremah 
Shiva .. Shangoh 
Butzimmy .. Yumallad 
Yaoh 

Dumnezteu .. Banarah 
Gaya .. Munetoh 
Aton .. Amon .. Yemanjah 
Ereh .. Yaoh 

Yansan .. Adonay 
Brahma .. Gedepoh 
Tzikem-Boo .. Atzilah
Yaoh 

D'Olodum .. Yamanah 
Oshossy .. Shido 
Buda .. Gee .. Jeovah 
Ereh .. Yaoh

sexta-feira, 22 de maio de 2009

calma

estava passando perto e entrei no jockey para conhecer as baias onde ficam os cavalos de corrida. em cada baia tinha um cuidador e um cavalo imponente e circunspecto. numa delas tinha um cavalo e uma ovelha. um ao lado do outro. perguntei ao cuidador: "o que essa ovelha faz aqui?". "ela acalma ele, ué. sempre antes de correr coloco ele perto dela. eles conversam e ele fica bem calminho."

quinta-feira, 21 de maio de 2009

história

eu estava sentada no aeroporto, esperando um voo e me chamou a atenção um menino deficiente, com alguma doença mental rara. estavam ele e o pai juntos. o menino tinha uma expressão muito doce, mas batia repetidamente a cabeça contra o corpo do pai. o pai reagia com paciência, mas com um ar desolado também. fiquei pensando na dificuldade de ter um filho deficiente, quando se juntou a eles um outro filho, deficiente também. e logo mais um. eram três filhos com a mesma doença, todos grandes, fortes, bonitos e com a mesma expressão de inocência. lembrei imediatamente de um conto do oscar quiroga, a galinha degolada, que narra a história de quatro irmãos deficientes mentais abandonados pelos pais à própria sorte e mudez. no mesmo instante, sentou-se ao meu lado um rapaz e abriu um livro de contos. espiei, e o conto que ele lia era a galinha degolada. emudeci também. era como se o conto tivesse vindo até nós vivo, para nos ser contado e transformado. acho a ideia de coincidências mais bonita do que a ideia de destino. penso que elas são mais misteriosas ainda do que ele. como se forças narrativas se atraíssem para se encontrarem para aqueles que se interessam por elas. as histórias querem ser contadas. 

quarta-feira, 20 de maio de 2009

enguia

por causa do filme "o tambor", sempre detestei enguias. a combinação de réptil e peixe, cobra marinha, me causava medo e uma ideia sombria dos mistérios insondáveis do mundo. mas cortázar, em "prosa do observatório", compara os caminhos das constelações, no céu, com os caminhos das enguias, no fundo do mar. freud pesquisou a sexualidade das enguias em trieste, cidade do mistério encantador e hoje eu li esse poema do eugenio montale, que finalmente me conciliou com o engima lindo desse bicho de alma verde, que caminha pelo coração das rochas:

A Enguia

A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para alcançar nossos mares,
nossos estuários, os rios
que sobe pelas profundezas, contra a enxurrada,
de braço em braço e depois
de veio em veio, cada vez mais delgados,
sempre mais dentro, sempre mais perto do coração
da rocha, filtrando-se
por regos de lama até que um dia
uma luz desfechada dos castanheiros
acende sua chispa num poço de água parada,
nas valas que se despejam
dos flancos do Apenino, na Romagna;
a enguia, torcha, açoite,
flecha de Amor na terra
que só as nossas ravinas ou os ressecados
regatos pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a verde alma que procura
a vida onde só
reina a aridez e a desolação,
a centelha que diz
tudo começa quando tudo parece
carbonizar-se, galho enterrado;
breve arco-íris, íris gêmea
daquela que teus cílios encastoa
e que fazes brilhar intacta entre os filhos
do homem, afundados no teu lamaçal, podes tu
não crê-la irmã?

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

terça-feira, 19 de maio de 2009

língua

tinha um homem distribuindo jornais na rua. ele mostrou a língua para uma mulher e fez um barulho. eu mostrei a língua para ele e fiz um barulho igual. ele riu. eu ri. foi bom.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

piano

Através das lâminas da persiana, eu vejo várias peças de roupa penduradas no varal, estendendo-se ao sol. Sempre acho essa cena linda, mas não entendo o porquê. Hoje, olhando para as roupas, me lembrei que, quando eu era pequena, tinha uma professora de piano linda e alegre que, para que eu aprendesse a escutar as coisas, me levava para o quintal de sua casa e pedia que eu imaginasse cenas bonitas. Me lembro que, ouvindo alguma sonata, pensei em um varal estendido, com muitas roupas penduradas e uma mulher preocupada em fazer cabê-las todas. A professora gostou muito e agora eu entendi tudo.

domingo, 17 de maio de 2009

arte

conheci uma mulher que trabalha como arrumadeira numa galeria de arte. com o tempo, de tanto ver as obras e os artistas, ela criou sua própria coleção imaginária. uma coleção mental, mas numerada, catalogada e avaliada toda na memória. outro dia ela veio correndo e disse: comprei! comprei mais um! ela escolhe as obras minuciosamente, demora para arrematá-las e finalmente decide. então cataloga na memória e numera. já possui quatrocentas e tantas. agora diga: quem é o artista aqui? 

sexta-feira, 15 de maio de 2009

ninho

coleciono ninhos. mas só ninhos já abandonados pelas mães passarinhas: aqueles que caem ou os que ficam abandonados nas árvores. e não os procuro. são eles que precisam vir até mim, se não não quero. o porteiro da escola veio hoje me mostrar um ninho de beija-flor incrustado numa fenda do muro do estacionamento. enfiou a mão lá dentro e o retirou. uma concha de paus, barbante e fio de nylon muito bem entrelaçados, formando uma trama mínima. menor do que uma palma da mão fechada. lá uma beija-flor fêmea chocou e de lá nasceu um beija-flor pequeno, que agora já deve ser grande e já deve ter beijado milhares de flores, numa velocidade maior do que o nosso olhar é capaz de captar. e o ninho dele, sua casa, mora na minha parede. ninho - que nome lindo para uma casa.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

lagarta

o marceneiro que estava aqui em casa me disse: olha!. na ameixeira do quintal tinha uns doze papagaios. grandes, azuis e verdes, comendo ameixas. comiam como se fossem macaquinhos. descascavam a pele, mordiam e cuspiam o caroço fora. fiquei dançando pela casa como uma lagarta listrada. à noite falei pro joão: vieram doze papagaios aqui. ele disse: nada, eram só maritacas.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

água

a leda pegou um táxi outro dia. ele viu que ela lia um livro e disse que adorava ler. que seu ídolo era o fernandes. fernandes? é, o millor fernandes. que ele tinha um livro dele em casa, e que não venderia nem por um milhão de reais. que tinha sido pescador e que pra ele deus existia, sim, mas era a água.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

gata

Seu Adálio, o vigia da minha rua, cuidava de muitos gatinhos que nasceram pela vizinhança, quase todos pretos. Um dia, faz uns seis meses, a carrocinha veio e os levou a todos. Hoje, quando saía de casa, Seu Adálio veio correndo : a senhora não vai acreditar no que eu vou lhe contar. Depois de seis meses, aquela gatinha pretinha, que gostava tanto de mim, voltou sozinha. Foi ontem à meia-noite e meia que eu ouvi um miado. Quando fui ver, ela tava lá no tapetinho. E não me largou mais. Agora disseram que eu posso ficar com ela. Imagina só, seis meses caminhando até voltar pra cá. Como pode um bichinho fazer uma coisa dessas?